Era década de 50 em São Paulo, época em que o boom do café fazia com que a cidade sofresse constantes transformações em busca do tão falado – mas nem tão conhecido – progresso. No centro, o dinheiro grudava os tijolos que começavam a erguer os edifícios que tapavam o sol, mas prometiam prosperidade.
Dentre eles, lá próximo ao teatro municipal, começou a ser construído mais um prédio. No começo, ninguém percebeu, pois eram tantos os prédios sendo construídos que era fácil que as pessoas passassem ao lado das obras e não notassem o barulho ou a diferença da vista. Depois, conforme os 5 andares do prédio foram tomando forma, várias pessoas começaram a perceber que aquele edifício logo existiria. “Mas o que havia aqui antes?!” – perguntava um pedestre a outro, meio distraído. “Sei lá. Não consigo me lembrar. Devia haver algumas casas, só isso”. Conforme o tempo passava, o prédio ia tomando mais e mais forma, até que, 1 ano depois de começar a ser construído, ele estava pronto. Um edifício verde, de aproximadamente 5 andares, no centro de São Paulo.
Lá de cima, o prédio começou a observar as pessoas. Como estava em uma rua movimentada, podia observar o vai-e-vem infinito das pessoas – ou melhor – dos pontinhos pretos que entravam e saiam de máquinas ou se moviam com suas duas pernas. No começo, ele gostava das pessoas. Via-as andar com certa pressa – o que era totalmente desnecessário em sua opinião – mas havia muita simpatia: elas se cumprimentavam, as damas eram bem tratadas pelos cavalheiros, os bares tocavam samba aos desocupados, e as pessoas nunca conseguiam acertar aonde estava a bolinha do mágico da esquina. Ao seu lado, por algumas vezes, podia ver os humanos se divertindo em alguma peça de teatro, ouvia os aplausos e desejava poder ver a peça. Desejava também não ser o único prédio da vizinhança que percebesse aquilo tudo, e ter um amigo prédio para poder conversar.
O tempo passou, e mudanças sutis foram acontecendo. Primeiro, as máquinas foram ficando mais rápidas, de modo que as ruas, cada vez mais, ficassem perigosas para quem andava a pé e fossem cada vez mais abandonadas pelos pedestres (que passaram a amontoar-se na calçada), servindo exclusivamente aos carros. Além disso, havia uma quantidade muito maior deles agora, que crescia a cada dia. O vestuário das pessoas também mudou. Chapéus foram se rareando na medida em que a formalidade foi perdendo espaço ao confortável. Os bondes deram lugares a máquinas maiores e mais eficientes: os ônibus e trólebus. O teatro começou a ter cada vez menos peças, e sua fachada começou a se desgastar.
Mas, dentre todas as mudanças, a que mais entristeceu o prédio não foi exatamente visual. Ela estava na maneira como os pontinhos pretos se relacionavam. Elas corriam – como se parecessem de alguma forma assustadas, com medo, fugindo de algo. Não havia mais espaços para damas e cavalheiros. Não havia mais samba no bar, apenas bêbados. No lugar das formalidades, surgiam palavras novas que o prédio logo descobriu serem ofensas; palavrões. E, de repente, os pontinhos ficaram cegos. Eles conseguiam desviar dos obstáculos e andar sem bater, mas não conseguiam ver que haviam outros pontinhos a sua frente. Não haviam qualquer relação entre duas pessoas. Eles apenas andavam, todos os dias, indo e vindo, sem motivo. E o prédio não conseguia entender aquilo.
Eis que um dia, um fiscal a prefeitura começou a visitar todos os prédios da região. Ele estava coletando dados para o senso da cidade, e deveria anotar informações sobre todos os prédios.
Quando chegou ao prédio verde, não achou o interfone para falar com o porteiro ou com os moradores (aquele não parecia ser um prédio comercial). Tão pouco achou qualquer tipo de campainha – havia apenas o portão. Meio sem jeito, sem ter certeza do que fazer, consultou os dados que tinha sobre os prédios da região – mas aquele prédio não constava. Ele não existia nos registros da cidade. Tocou no portão de ferro, e este se abriu com facilidade. O homem entrou, com medo de estar invadindo, mas determinado a fazer o seu serviço. Andou cruzando o pequeno e bem cuidado jardim – coisa rara no centro – e subiu a escada em direção ao salão do prédio.
Ao entrar, se sentiu de volta aos anos 60. Se tratava de uma grande sala de estar, cheia de sofás e poltronas velhas (mas tão bem conservadas, que pareciam novos), estantes e mesas de centro, e lustres com velas acessas. Era uma sala muito aconchegante e muito bem iluminada. Um enorme carpete verde – muito bonito, cheio de rendas – tomava o centro da sala. Entretanto, não havia ninguém. Tão pouco havia qualquer escada ou elevador que levasse ao resto do prédio. Havia apenas aquilo: uma grande e bonita sala de estar dos anos 60, muito bem cuidada, mas sem ninguém que estivesse cuidando ou tomando conta.
O fiscal saiu, anotando esta estranha informação em seu relatório. Quando entregou-o a seu superior, este estranhou tanto quanto o primeiro, e entregou a seu superior. Isto se repetiu na hierarquia no mínimo umas 4 vezes, até que o relato do tal prédio chegou as mãos do secretário de urbanismo da subprefeitura da Sé. Ele determinou que se encontrassem os donos do prédio – mas foi impossível, nada constava nos arquivos. Determinou que encontrassem a construtora responsável para perguntar sobre o dono – mas não havia qualquer registro dentro ou fora do prédio. Pediu para que fosse realizada uma pesquisa na vizinha acerca do prédio, perguntando para as pessoas se já haviam visto alguém entrando ali. Mas, ao invés de responder as perguntas, as pessoas que passavam ali diariamente olhavam para o prédio com cara de espanto. “Sabe que eu nunca reparei neste prédio?” era a resposta mais comum. A pesquisa não teve uma única resposta sequer.
Sem ter mais mecanismos para descobrir a identidade do prédio, o secretário afirmou que, se aquele prédio não tinha dono, não tinha acesso aos andares superiores (se é que tinha andares superiores), e não tinha regulamentação, ele estava fora de lei. Desta forma, não importava qual era o dono, ele deveria ser demolido.
No processo judicial, escreveu a seguinte explicação para o pedido: “O edifício em questão não exerce nenhuma função, não tendo sequer acesso aos seus andares. Não foi possível entender sua existência, e deve ser demolido por esta razão.
O processo foi aceito, e o edifício foi morto. Sem nem saber porque as pessoas haviam ficado cegas.
Aqui vc se superou! Uma interessante mistura de estilos: beira o realismo fantástico sem perder o tom de uma crônica de vários tempos!
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